Muitos tripulantes têm me questionado sobre as recentes mudanças ocorridas na legislação especial do aeronauta (Nova Lei do Aeronauta) e na legislação trabalhista no geral (Reforma Trabalhista), principalmente pelo fato de que as atividades do dia a dia destes profissionais (pilotos, comissários e mecânicos de voo) são extremamente singulares e dependem de uma série de regras e normativas específicas.
A profissão do aeronauta é, sem dúvida, uma das mais excêntricas dentre todas as ocupações e ofícios conhecidos, o que pode ser verificado, por exemplo, da própria jornada de trabalho, cujo encerramento se dá após 30 minutos do corte dos motores da aeronave. Ou seja, atrela-se a contagem do tempo de trabalho a um critério operacional do avião.
Mais que isso, ao contrário do que ocorre em outras profissões, para que um tripulante possa exercer seu ofício, além de possuir certificados de capacitação técnica e física válidos e atestados pela autoridade aeronáutica, deve provar constantemente à Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), em exames periódicos e exigentes de adestramento e revalidação, que ainda preenche os requisitos mínimos obrigatórios para a obtenção/manutenção das licenças de voo e/ou habilitações necessárias ao exercício da respectiva atividade. De forma análoga e hipotética, seria como obrigar o advogado a prestar a prova de proficiência da OAB de tempos em tempos, sob pena de, não obtendo a nota mínima exigida, ficar impedido de praticar a profissão.
Bem por isso que ouso em considerar a existência de um sub-ramo do direito do trabalho, próprio à categoria dos aeronautas, ao qual denomino "direito trabalhista aeronáutico", ou "direito aeronáutico do trabalho", que pode ser considerado como o "conjunto das normas, instituições jurídicas e princípios que disciplinam as relações de trabalho dos aeronautas (pilotos de aeronave, comissários de voo e mecânicos de voo), e determinam os seus sujeitos e as organizações destinadas à proteção desse trabalho em sua estrutura e atividade".
Acrescente-se a isso o fato de que os aeronautas obedecem normas próprias, determinadas pelas Convenções Internacionais sobre matéria aeronáutica; pela lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA); pela lei 13.475/17 (Nova Lei do Aeronauta); pela legislação complementar expedida pela ANAC (ex.: Regulamento Brasileiro de Aviação Civil – RBAC); pelas Convenções Coletivas de Trabalho (CCT) específicas da categoria (CCT da aviação regular, CCT do taxi aéreo e CCT da aviação agrícola); residualmente pela CLT; e por normativas operacionais internas emitidas pelas empresas de aviação e por operadores de aeronaves.
Após esse necessário introito, que apresentou pequenas peculiaridades acerca desta profissão tão pouco explorada pela concepção doutrinária, e antes de tecer qualquer comentário acerca da Nova Lei do Aeronauta, é importante relembrarmos as principais e recentes mudanças ocorridas na legislação trabalhista brasileira.
Em meio a um cenário de crise e instabilidade política e econômica, 2017 também foi um ano de intenso trabalho legislativo no Congresso Nacional, principalmente com relação à modernização das práticas trabalhistas entre empresas e trabalhadores.
Um exemplo das expressivas mudanças na legislação trabalhista brasileira ocorridas no último ano foi o advento da lei 13.467/17, que instituiu a denominada "Reforma Trabalhista". O projeto da reforma (PLC 38/17) foi sancionado sem vetos pelo presidente da República, Michel Temer, no dia 13 de julho do ano passado. A lei foi publicada no Diário Oficial do dia seguinte (14) e entrou em vigor no dia 11/11/17, 120 dias após sua publicação.
Em suma, a lei da reforma trouxe novas diretrizes acerca da validade e peso dos acordos em comparação com a lei; trabalho intermitente; gestantes e lactantes; jornada de trabalho diária; parcelamento de férias; intervalo dentro da jornada; jornada parcial e temporária; terceirização; fim da contribuição sindical obrigatória; demissão por acordo; dentre outras.
Aliás, sobre o novo instituto do "trabalho intermitente", que permitirá a prestação de serviços com interrupções, em dias alternados ou apenas por algumas horas na semana, é importante ressaltar que, dentre todas as categorias profissionais existentes, a única que expressamente não poderá adotar tal modalidade é a dos aeronautas, tendo em vista as excentricidades mencionadas acima, além de outros fatores que obrigaram tal exclusão.
Mal passou a vigorar, a lei da reforma já sofreu rápidas alterações, na medida em que o então Presidente, Michel Temer, editou em 14/11/17 a MP 808, que modificou diversos pontos da nova legislação, tais como trabalho intermitente e autônomo, representação em local de trabalho, condições de trabalho para grávidas e lactantes, jornada de 12x36, dentre outros.
Inclusive, esse cenário atual de grandes mudanças legislativas na seara trabalhista foi, e está sendo, tão volátil, que a própria MP 808 perdeu sua validade no último dia 23 de abril de 2018. Isso porque a comissão mista formada por senadores e deputados para discuti-la se reuniu apenas uma única vez, de modo que seu texto não foi apreciado tempestivamente pelo Congresso. Com isso, todos os pontos nela tratados deixaram de valer.
Outro grande marco recente foi a criação da lei da terceirização (lei 13.429/17), que foi aprovada pelo Congresso em março de 2017. Ela passou a permitir que as empresas contratem trabalhadores terceirizados para exercerem quaisquer funções na companhia, até mesmo sua atividade-fim – o que antes era proibido pelos tribunais do trabalho.
As mudanças não pararam por aí, e atingiram a classe profissional dos aeronautas em grau de exclusividade. No dia 29 de agosto de 2017 foi sancionada, sem nenhum veto, a Nova Lei do Aeronauta (lei 13.475/17), que entrou em vigor no dia 27 de novembro do ano passado, com exceção de alguns artigos referentes a limites de voos e pousos por jornada, limites mensais e anuais de horas de voo e limites de jornada diária, que somente valerão após decorridos 30 meses da publicação da lei (fevereiro de 2020).
Até então a categoria profissional dos aeronautas era regulada por uma lei que estava em vigor há mais de 30 anos (lei 7.183/84), criada para atender os anseios e necessidades desses profissionais na década de 80, época em que o país contava com uma malha aérea bem inferior à de hoje. Quase não se voava de madrugada e as escalas de trabalho eram bem mais flexíveis que as atuais. Nesse contexto, a nova lei vem substituir a antiga legislação sobre o assunto, trazendo significativas mudanças na rotina laboral de pilotos, comissários de bordo e mecânicos de voo.
Abaixo, segue um resumo das principais alterações contidas na Nova Lei do Aeronauta:
EXCLUSIVIDADE DE BRASILEIROS: Obrigatoriedade de que o trabalho remunerado a bordo de aeronaves seja prestado por brasileiros (ressalvados 1/3 de comissários estrangeiros quando em voo internacional e instrutores estrangeiros pelo período da instrução);
PROIBIÇÃO DA TERCEIRIZAÇÃO: Proibição de terceirização em todas as diferentes atividades da aviação (instrutores, executiva, agrícola, serviço aéreo especializado e comercial). Trata-se da única categoria profissional com essa blindagem através de lei própria no Brasil;
TRIPULANTE EXTRA: O tripulante que se desloca a serviço da empresa, mas sem efetivamente exercer função a bordo, tem a designação de "tripulante extra". As empresas deverão fornecer ao tripulante extra assento na cabine de passageiros, sendo proibida a utilização de "jump seats" (assentos extras na cabine de comando) para esse deslocamento;
IMPERIOSA NECESSIDADE: A lei do aeronauta autoriza o comandante da aeronave a estender a jornada de trabalho no caso de "imperiosa necessidade", dentre outros motivos. A nova lei traz uma definição clara de imperiosa necessidade para essa extensão de jornada, sendo agora entendida como a "decorrente de catástrofe ou problema de infraestrutura que não configure caso de falha ou falta administrativa da empresa";
LIMITAÇÃO DO SOBREAVISO: O limite mensal de sobreavisos que poderão ser cumpridos pelo aeronauta permanece em 8. Porém, agora não há limite semanal, que antes era de 2 sobreavisos por semana;
COMPLEMENTAÇÃO DE VOO: O empregador não poderá exigir complementação de voo, ou qualquer outra atividade ao final da viagem, do tripulante de voo ou de cabine na sua base contratual, sendo facultada ao tripulante a aceitação de eventual solicitação nesse sentido, não cabendo qualquer tipo de penalidade em caso de recusa;
ACOMODAÇÃO NO REPOUSO (PERNOITE): Definição em lei de acomodação adequada durante o repouso: quarto individual com banheiro privativo e condições adequadas de higiene, segurança, ruído, controle de temperatura e luminosidade;
FOLGAS: Mínimo de 10 folgas mensais, independentemente do tipo de aeronave tripulada. Antes, eram 8. Também, ficou definido que a folga só terá início após a conclusão do repouso da jornada, e seus horários de início e término serão definidos em escala previamente publicada;
ESCALA MAIS RENTÁVEL: A empresa deverá pagar a remuneração do trabalho não realizado por motivo alheio à vontade do tripulante, se outra atividade equivalente não lhe for atribuída. Ou seja, no confronto entre a escala publicada no início do mês e a executada ao final, deverá ser paga aquela mais rentável;
CONTROLE DE FADIGA: Criado o Sistema de Gerenciamento de Risco de Fadiga Humana, que deverá ser regulamentado pela ANAC com base nas normas e recomendações internacionais de aviação civil, e com participação do sindicato profissional da classe. As limitações operacionais estabelecidas na nova lei do aeronauta poderão ser alteradas pela adoção do sistema de gerenciamento de fadiga;
TAXI AÉREO E AVIAÇÃO GERAL: Os segmentos do taxi aéreo e da aviação geral, nesta incluídos os serviços aéreos especializados e a instrução de voo, são mencionados de forma expressa, inclusive com a previsão de normas específicas sobre contratações, jornadas, tripulações, escalas de serviço, dentre outras.
De outro lado, sobre as normas processuais trazidas com a Reforma, que regularão as reclamações e acordos trabalhistas, houve profundas alterações nas regras que disciplinam os honorários de sucumbência e a gratuidade de Justiça. Dessa forma, a partir da nova legislação, quem perder a ação, ou algum dos pedidos da ação, deverá pagar honorários de sucumbência ao advogado da parte vencedora. Ainda, para que a parte seja isenta do pagamento de custas, e, portanto, beneficiária da Justiça gratuita, deverá comprovar que recebe salário igual ou inferior a 40% do limite máximo do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), ou ao menos demonstrar insuficiência de recursos para arcar com as custas do processo.
E, diga-se, essas regras são aplicadas a todos os que buscam o judiciário visando uma solução para um conflito trabalhista, incluindo-se aí os aeronautas. Entretanto, destacamos que desde a entrada em vigor da Reforma Trabalhista já foram protocolados mais de 15 questionamentos no STF sobre a lei 13.467/17, dentre eles uma ADIn proposta pela PGR para que os artigos relativos à Justiça gratuita e aos honorários de sucumbência sejam declarados inconstitucionais, em vista de desconformidades destes com princípios e artigos constantes da Constituição Federal.
Nesse caminhar, por sua vez, o TST suspendeu, em 6 de fevereiro de 2018, a reunião que debateria alterações em normas da Justiça do Trabalho por causa da lei 13.467/17. O motivo foi o impasse causado por um artigo da nova lei, que estabelece regras justamente para alteração de súmulas e enunciados. Agora, o colegiado vai elaborar um parecer para decisão posterior sobre a constitucionalidade de alguns artigos pelo pleno da Casa, formado pelos 27 ministros. Também foi formada uma comissão, com nove ministros, para debater a revisão das chamadas jurisprudências de direito intertemporal. Em resumo, é a discussão central, que tem provocado controvérsia: os termos da nova lei se aplicam a todos os contratos ou apenas àqueles iniciados depois da entrada em vigor da legislação, em 11 de novembro/17? Todas essas questões retornarão à pauta do TST em momento posterior.
Certo é que a aviação é extremamente regrada, visando sempre em primeiro lugar a segurança das atividades aéreas. Seu progresso técnico e operacional é ágil e conta com rápidas mudanças. Essa mesma velocidade deve permear seu progresso legislativo, com o fim de acompanhar o desenvolvimento da indústria aeronáutica e das práticas comerciais e laborais empregadas pelo setor.
A par disso, as novidades legislativas recentemente acrescentadas ao ordenamento trabalhista pátrio trouxeram significativas mudanças na rotina laboral de pilotos, comissários e mecânicos de voo, justamente com vistas a proporcionar a estes trabalhadores um controle mais apurado da fadiga humana envolvida com as operações aéreas, bem como melhor qualidade de vida e uma rotina de trabalho mais controlada, que ainda é desenvolvida por turnos ininterruptos e irregulares de trabalho.
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*Carlos Barbosa é advogado sênior do escritório Cerdeira Rocha Advogados e Consultores Legais.